22 de maio de 2007

Cartas Para Sakhalin - Diário de Aveiro (005)

O nosso esplendor.
Teremos herdado da nossa gloriosa história, apesar das muitas coisas que não nos deverão deixar orgulhosos, uma certa ansiedade de grandeza. Não está mal querermos ser bons. Não está errado querermos estar entre os melhores. Já não consigo perceber onde fomos buscar a ideia de o conseguir sem trabalho duro. De onde veio esta moda, tão em voga, de glória fácil?
As manifestações dessa (fraca) vontade em sermos “os melhores de todos”, a todo o custo, são muitas. O problema é que nem sempre colocamos esforço nas tarefas mais dignificantes e valiosas para o nosso bem-estar, aquelas que nos garantiriam um futuro solidamente melhor.
Basta dar uma olhadela à televisão para verificar que são cada vez mais as pessoas que procuram o êxito fácil e efémero, sonhando-o duradouro. São muitos os que procuram fama e dinheiro em concursos totalmente imbecis, devassando a sua intimidade, mostrando, normalmente, o que têm de mais básico. São as notícias que, a propósito de uma qualquer zanga de fiéis e beatas com o padre, colocam a aldeia no mapa dos cidadãos cientes dos seus direitos, dando-lhes 30 segundos de sucesso televisivo. É o cromo da televisão que se coloca atrás do entrevistado para aparecer (e quantos políticos não vemos também a fazer esta figurinha?).
Mas somos também profícuos a bater recordes. Na edição comemorativa dos 50 anos do livro Guinness (2005), entre excentricidades para todos os gostos, há 24 pérolas portuguesas. Lá diz, por exemplo, que temos o maior reinado (D. Afonso Henriques, com 73 anos e 220 dias) – este é natural que o asseguremos por muitos anos –, o maior logótipo humano (Euro 2004), a maior bicicleta, a maior francesinha e o maior pão com chouriço, claro.
(1)
Com muita pena minha, não pude confirmar se ainda é nossa a maior feijoada. Apesar de nem sermos os detentores dos mais loucos, isso não alivia nem um pouco aquilo que me preocupa. É que me parece que é crescente entre nós a mania das grandezas fáceis, em vez de colocarmos tónica no estudo, na dedicação, na perseverança, no trabalho árduo, que tenha resultados para lá do imediato.
Não teremos maiores nem menores capacidades do que outros povos. Não estaremos fadados para o infortúnio e a pobreza por qualquer desígnio superior. E é por isso que temos de corrigir o nosso comportamento – chega de discurso mole e desculpas fáceis. A mudança está em cada um de nós.
Os exemplos de desleixe e falta de esforço são inúmeros, assim como são os de abuso da lei e do poder, de permissividade e de impunidade para quem passa a perna nos outros. É a sociedade dos direitos sem deveres que erigimos tijolo a tijolo sobre areias movediças. É a telenovela «se é bom para mim, é um direito meu».
O mal, inevitavelmente, entrou pelas escolas dentro. Apesar do facilitismo instalado, nunca se copiou tanto nas escolas e nas universidades portuguesas, algo que seria, noutras paragens, motivo de profunda vergonha e expulsão. São cada vez mais os casos de plágio, perpetrado até por gente com responsabilidades educativas. Mas não se atribua à escola a responsabilidade deste desvario, não, porque esse é, mais uma vez, o caminho fácil. O vírus está espalhado por aí, por todo o lado. Apanha-se em casa, na televisão, nas ruas, no trabalho, no parlamento. É uma epidemia – veja-se a promiscuidade galopante entre políticos e interesses – e, como tal, tem que nos envolver a todos num combate sem tréguas.
O caminho mais fácil, o do Chico-esperto, ganhou simpatizantes e até o aplauso do público, que muitas vezes assiste deleitado ao triste espectáculo. Pessoas que espezinham as regras mais básicas de respeito pelos outros, pessoas que dão o golpe nas filas de espera, estacionam nos lugares dos deficientes, não respeitam idosos, conduzem violentamente – teremos certamente o recorde de acidentes na estrada –, não respeitam o silêncio numa biblioteca, atiram lixo das janelas dos carros, fazem trinta-por-uma-linha. Podíamos ir por aí fora sem parar nos caminhos do facilitismo, prova triste do desejo de encontrar uma felicidade fácil e rápida, sem trabalho, sem deveres.
Será assim que se pretende levantar hoje de novo o esplendor de Portugal?

O rapaz que queria ser alguém
Um rapaz de 16 anos andava com sinais comportamentais estranhos. Dizia a mãe que ele devia ter algum problema psicológico, desses que o Freud enunciou, pois só arranjava chatices na escola, e não era melhor a caminho de casa. Faltava às aulas, não estudava, já tinha sido apanhado a copiar, saltava os muros da escola para vadiar na vila e fazer tropelias que lhe granjearam o epíteto de “terrível” – uma vergonha, sobretudo para uma família tão rica e esmerada nos preceitos das aparências sociais.
Afinal, o que poderia estar errado com aquele miúdo cuja educação era, no desabafo da mãe, «tão boa»? «Não lhe dei eu tanto conselho? Não lhe deu o pai quando ele fez asneira? Não somos nós um exemplo?»
A pobre senhora não entendia tamanha injustiça. Sobretudo não entendia como é que os filhos dos vizinhos, seus colegas de escola, gente pobre e humilde, eram bons alunos e, não sendo nenhuns santinhos, os seus estragos não eram por aí além. Foi então que decidiu levá-lo ao psicólogo, o que só por si já era sinal de distinção social lá na terra.
De lá veio mais descansada, mais aliviada com o diagnóstico, que rapidamente comunicou a todos, como se da cura se tratasse. Afinal, não era grave, nem sequer chegava a ser doença, antes pelo contrário: «O psicólogo disse-me que ele até tem muita vontade de ser alguém na vida.»
Na verdade, não sabemos o que o psicólogo lhe terá dito – certamente mais. Talvez algo que se tenha perdido na complexidade da linguagem técnica. Ou terá acontecido que só ouviu aquilo que queria ouvir e dito aquilo que queria dizer.
Pelo resultado da coisa, não compreenderam – especialmente os pais – que é imprescindível mais amor, mais compreensão, mais intimidade, mais tempo, mais comunicação, conselho amigo. Não compreenderam – especialmente o filho – que é preciso esforço, trabalho e dedicação, para «ser alguém na vida».
A superioridade daquela frase, bradada com tamanha ostentação, perdurou na cabeça dalguns dos miúdos lá da rua: será que eles também poderiam «ser alguém na vida?» Tiveram a sorte de lhes terem dito atempadamente que isso é mais do que ter dinheiro e fama rápida. É ter princípios, honestidade, dignidade, é conquistar com seriedade e justiça um lugar entre os outros, e não acima dos outros.

Governo e Igualdade de Oportunidades.
Volto a este assunto já abordado na última crónica para deixar apenas uma estranha nota comparativa: enquanto no nosso governo há apenas 2 ministras em 16 (5 mulheres ao todo em 50 membros), em França há 7 ministras em 15. (2) Vale a pena pensar nisto com seriedade e deixar de lado o discurso fácil do politicamente correcto.
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Artigo publicado hoje no jornal Diário de Aveiro

4 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Ângelo,
Muitos parabéns! É um gosto ler as tuas crónicas. Gostei especialmente desta e da 002 pela escrita e pelos temas. Partilho da tua indignação. Continua.

Susana Serrazina

Anónimo disse...

http://jn.sapo.pt/2007/05/21/opiniao/pequena_carta_a_jose_socrates.html

Francisco da Costa disse...

Olá. Esta faz-me lembrar a do "ele não é burro, tem é dificuldade em aprender".
Um abraço.

Lia disse...

A maioria dos casos que surgem á minha volta, chama ao problema desses meninos de "hiperactividade", mais um palavrão, que ninguém sabe o que significa mas que encerra em si, todas as explicações necessárias e todos os tratamentos possíveis. Basicamente é a educação do "deixa-o estar, é hiperactivo"!