21 de junho de 2007

Cartas Para Sakhalin - Diário de Aveiro (008)

Míngua de humanidade?

O caso de uma professora de uma escola de Cacia que foi obrigada a trabalhar com leucemia até falecer, terminando os seus dias incompreendida e abandonada pelo seu “patrão” num momento tão difícil, de tão angustiante sofrimento, é algo que nos deve envergonhar a todos, e não apenas ao ministério da Educação.
Como foi possível acontecer tal desumanidade? Como é possível que, aos olhos cegos de quem vai mandando – mais alheios às pessoas do que a formalidades e números frios, coisas para encher relatórios, agradar chefias e firmar-se na escala degradante do servilismo político e organizacional -, a dignidade das pessoas, de uma pessoa, tenha tão pouco valor? Ninguém compreende.
Vale a pena reflectir nesta sociedade que temos vindo a construir, percebendo que nem tudo são conquistas, muito menos de Abril. Sem quaisquer julgamentos excitados pelo mediatismo atingido, e com o devido respeito, contenção e pudor que a gravidade da situação merece – trata-se do sofrimento de uma pessoa real e dos seus próximos -, não podemos deixar de lamentar veementemente o ocorrido e pedir explicações. Mais do que o direito à indignação, de que falava o Dr. Mário Soares, é o direito à justiça que está em causa. Mais, é o direito dos cidadãos e trabalhadores, a quem devemos exigir cada vez mais responsabilidade em sociedade, a merecerem o mínimo de respeito pelos seus direitos e o apoio social mínimo, sublinhado em momentos de profunda gravidade.
Não sou apologista de enforcamentos em praça pública, tão ao gosto do populismo fácil, sinónimo de algum atraso cultural, fruto de uma preocupante necessidade de catarse colectiva, que o simples bom senso desaconselha, mas que, em busca de uma explicação pouco iluminada para a vida, atribuindo os males do mundo aos outros – sempre os outros, uma entidade qualquer, abstracta -, resvala na doentia tentação, no calor do momento, para colocar a corda à volta do pescoço do primeiro incauto. Um extremismo que apodrece a vida em sociedade, até pelo facto de que, em Portugal, há muitos julgamentos na rua e poucos nos tribunais.
Por isso mesmo, pelo que fica dito, não podemos deixar de exigir uma avaliação rigorosa, por quem de direito, da forma como foi tratada esta pessoa. E isto tem de passar a ser regra, porque o relativismo e a impunidade em que vivemos está a dar cabo de nós. As facilidades aparentes que a todos têm sido consentidas, em todos os sectores da vida pública, acabam sempre em prejuízo grave generalizado, maior para quem não está protegido por amigos fortes, na orla de enviesados poderes.
De acordo com as informações que ainda não vi ninguém contrariar, a senhora teve de se deslocar à escola para trabalhar, durante um período terminal da sua vida, debilitada, num desespero que podemos apenas imaginar, mas nunca alcançar na sua assustadora dimensão. Tentou, infrutiferamente, a compreensão, a compaixão – porque não dizê-lo – dos que estavam à sua volta e podiam alterar o curso dos acontecimentos, proporcionado-lhe um fim de vida mais “tranquilo”. O que impediu um desfecho mais humano? A lei, os regulamentos ou os próprios Homens?
Das pequenas às grandes coisas do nosso dia-a-dia, vamos percebendo um egoísmo e alheamento dos outros crescente, promovido por uma concepção de sociedade de direitos, onde há cada vez menos espaço consagrado aos deveres. O Estado e os organismos da administração pública têm aqui um papel fundamental na promoção de uma cultura de rigor, de exigência, de responsabilidade, sobretudo dando o exemplo. A lei, que a todos deve cobrir, sem excepção, não deve ser um lanche de poderosos e amigos. Os tribunais, juízes, investigação deverão garantir-nos Justiça e a crença na sua verdade e imparcialidade – à mulher de César não basta ser séria, e esta sabemos bem do que anda capaz. Os políticos, do vão ao topo da escada, devem saber assumir responsabilidades imediatas de acontecimentos que, independentemente das decisões em sede própria, consubstanciam, claramente, casos dúbios de actuação no âmbito da sua responsabilidade política. Pelo menos, exige-se que dêem a cara e vão ao encontro dos seus concidadãos, a quem devem servir, em vez de se esconderem no cómodo turbilhão de informação e desinformação, aguardando a quase certa tábua de salvação do esquecimento rápido ou da protecção clubista, que se apoia sem vergonha no lamaçal que nos invade e sufoca.
A triste frieza deste número que, estou certo, ninguém dirá agora que é apenas um, não significará que as pessoas, por quem passou o dossiê dessa pessoa, sejam menos competentes ou menos humanas. Porém, parece claro que a forma como todos olhamos para a vida dos outros nos papéis, no quotidiano das nossas tarefas e comportamentos, sobretudo quando lidamos com gente, precisa de um estado de alerta permanente e exigente, menos retórica, menos formalismos estéreis, regras justas e claras, e muito mais sensibilidade. E, para já, temos direito a um julgamento político da actuação dos responsáveis nacionais, regionais e locais, que, pelo que se tem visto, não abona nada em favor da transparência que o caso exige, nem da sua integridade. Hoje, por tudo e por nada, muitos se escondem atrás do segredo de justiça, essa figura sombria, apenas sussurrada cirurgicamente aos ouvidos de algum jornalista quando interessa.
Com isto, não defendo nenhuma acção exemplar, tão ao jeito do faz-de-conta-e-deixa-andar, nem a condenação obrigatória de ninguém – o mal pode estar muito distribuído –, mas antes que se perceba o que se passou e que a situação mude. Já não vamos a tempo de corrigir o que está feito, mas muito se pode fazer para que não volte a repetir-se. Sejam clarificadas e assumam-se as responsabilidades, mude-se o que houver para mudar, mas acabe-se com este clima de impunidade política e pessoal que ataca os fundamentos da nossa democracia.
Quem responde às perguntas que inevitavelmente nos assolam? Será possível defender que nada se passou de errado?
Precisamos de respostas, claras. E a tempo.

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