A nossa vida
“A Minha Vida”, de Bill Clinton (editado pela Temas & Debates), é um livro altamente recomendável. Clinton faz a sua biografia numa escrita bela e inteligente, de agradável leitura, sem fugir aos seus erros pessoais e políticos, mas também sem deixar esquecer êxitos, prescindindo da tantas vezes conveniente muleta da falsa modéstia, uma arma de fracos e falsos. Mais importante ainda é que escreve sobre si escrevendo sobre os outros. As pessoas que povoaram a sua vida, lhe deram apoio, ensinamento, aquelas onde se alicerçou, não são esquecidas. Desde os colegas de escola aos vizinhos da infância, estão lá todos, ou quase todos, como diz. E pede ainda desculpa aos que não aparecem, o que é simbólico.
Se cada Homem é um mundo, todos sabemos que cada pessoa é ela própria e muitas pessoas, numa espécie de intersecção das almas que se cruzam, na rua, num livro, numa música, numa obra de arte. Todos somos feitos dos outros, vivemos com e para os outros, precisamos deles, e só assim a vida tem um sentido maior. Só assim a vida pode ter algum sentido, aliás. Sabemos que isto é verdade mesmo quando, alienados, ou confortavelmente esquecidos, nos passeamos vestidos de indiferença pelas avenidas da vida. Alienados de que nascemos nus, e de tudo nos despiremos.
Clinton diz que «Psicologicamente, todos nós representamos uma complexa mistura de esperanças e medos. Todos os dias acordamos com a balança a pender para um lado ou para o outro. Se demasiada inclinada para a esperança, podemos tornar-nos ingénuos e ilusórios. Se demasiado inclinada para o lado contrário, podemos ser consumidos pela paranóia e pelo ódio.»
Espreitarmos, todos os dias ao acordar, para dentro do espelho que nos confronta, fazendo desse olhar uma janela para um mundo que nos excede, no encontro dos outros, é viver uma eternidade. É uma tarefa de desmaterialização da nossa breve, diria insignificante, existência física, num equilíbrio nem sempre fácil entre sombra e luz, entre peso e leveza, entre o eu e o mundo.
“A Minha Vida” mostra, num fabuloso exercício de memória, cheio de pormenores deliciosos, a vida tal qual ela é. Pode até nem ser a verdadeira vida de Clinton e estar romanceada, como convirá – afinal, o que interessa? Que é mais do que um livro, uma biografia política, lá isso é, sem sombra de dúvida. É um caminho de gente onde todos nos podemos encontrar, independentemente de credos e ideologias. Tudo o que lá houver de fantasia só enriquece a verdade, e dá mais sentido à existência.
Por entre aquelas linhas, ou no seu avesso, podemos sentir o pulsar das pequenas grandes coisas. Folheá-lo é respirar, um regresso à natureza. Faz-nos acreditar que vale a pena querer um mundo melhor para todos, sabendo bem como ele é, sabendo que não o mudamos radicalmente, de um dia para o outro, mas que o podemos melhorar passo a passo. Isso faz-se começando pelos próprios gestos do quotidiano, pelo exemplo, em vez de se pretender que seja uma entidade abstracta a resolver tudo. Talvez o Estado, talvez Deus, talvez os outros, esse grande eterno culpado por tudo o que vai mal.
Clinton, com um discurso simples, embora mostrando a sua inteligência e sentido político fora do comum, inspira-nos a ideia de que vale a pena trabalhar para melhorar a vida de todos. O acento que coloca na ambição, na dedicação, no trabalho árduo, na perseverança em busca de concretizar esse desígnio, com respeito por todos (mesmo os adversários), com especial atenção aos mais humildes e desprotegidos, enraíza as palavras na acção e na ética, cores tão desvanecidas no actual panorama internacional. Fá-lo com alegria, com orgulho, sem mostrar o rosto cinzento dos que transportam o pesado fardo dos eleitos, hoje tão característico, que mais não é que a falta de humanidade. Fá-lo com um nítido respeito pela liberdade, colocando-se acima da mesquinhez dos tempos.
A política, como a vida, é uma oportunidade de realização pessoal e colectiva, uma oportunidade única de felicidade. A sorte de poder servir.
Independentemente de se concordar ou não com as suas ideias, Clinton personifica um grupo de políticos com outra bagagem, com outra dimensão, outra classe. Nos dias que correm, temos dificuldade em vislumbrar, pelo menos no meu curto ver, gente com essa poesia. Não é que não haja para aí políticos com grandes competências, que os haverá. Parece-me é que não há alegria, e mais umas quantas outras coisas, como o respeito pela liberdade e pela justiça.
Não, não sou nem pessimista nem derrotista, antes pelo contrário. Porém, creio que não estarei muito longe da verdade se disser que sentimos falta de gente mais genuína, mais empenhada na resolução dos problemas, com verdadeira dedicação à causa pública, que veja na política um exercício nobre. Em vez disso, assistimos atónitos (e cada vez mais distanciados) a um “jogo sujo”, guerrilhas de interesses, amiguismos e carneirismos, clientelismos e lambebotismos. Os partidos, imprescindíveis ao jogo democrático, deveriam dar mais atenção à profundidade das suas responsabilidades sociais, em vez de serem, tantas vezes, mais um clube na luta pelo título do orçamento e dos prémios de jogo.
Se, como se ouve tanto, cada país tem os políticos que merece – e eu acredito nisso, pois claro –, então temos todos que fazer por merecer e exigir melhor. O que é mais difícil é que as melhorias têm de começar em cada um de nós, procurando acordar com a balança afinada.
“A Minha Vida”, de Bill Clinton (editado pela Temas & Debates), é um livro altamente recomendável. Clinton faz a sua biografia numa escrita bela e inteligente, de agradável leitura, sem fugir aos seus erros pessoais e políticos, mas também sem deixar esquecer êxitos, prescindindo da tantas vezes conveniente muleta da falsa modéstia, uma arma de fracos e falsos. Mais importante ainda é que escreve sobre si escrevendo sobre os outros. As pessoas que povoaram a sua vida, lhe deram apoio, ensinamento, aquelas onde se alicerçou, não são esquecidas. Desde os colegas de escola aos vizinhos da infância, estão lá todos, ou quase todos, como diz. E pede ainda desculpa aos que não aparecem, o que é simbólico.
Se cada Homem é um mundo, todos sabemos que cada pessoa é ela própria e muitas pessoas, numa espécie de intersecção das almas que se cruzam, na rua, num livro, numa música, numa obra de arte. Todos somos feitos dos outros, vivemos com e para os outros, precisamos deles, e só assim a vida tem um sentido maior. Só assim a vida pode ter algum sentido, aliás. Sabemos que isto é verdade mesmo quando, alienados, ou confortavelmente esquecidos, nos passeamos vestidos de indiferença pelas avenidas da vida. Alienados de que nascemos nus, e de tudo nos despiremos.
Clinton diz que «Psicologicamente, todos nós representamos uma complexa mistura de esperanças e medos. Todos os dias acordamos com a balança a pender para um lado ou para o outro. Se demasiada inclinada para a esperança, podemos tornar-nos ingénuos e ilusórios. Se demasiado inclinada para o lado contrário, podemos ser consumidos pela paranóia e pelo ódio.»
Espreitarmos, todos os dias ao acordar, para dentro do espelho que nos confronta, fazendo desse olhar uma janela para um mundo que nos excede, no encontro dos outros, é viver uma eternidade. É uma tarefa de desmaterialização da nossa breve, diria insignificante, existência física, num equilíbrio nem sempre fácil entre sombra e luz, entre peso e leveza, entre o eu e o mundo.
“A Minha Vida” mostra, num fabuloso exercício de memória, cheio de pormenores deliciosos, a vida tal qual ela é. Pode até nem ser a verdadeira vida de Clinton e estar romanceada, como convirá – afinal, o que interessa? Que é mais do que um livro, uma biografia política, lá isso é, sem sombra de dúvida. É um caminho de gente onde todos nos podemos encontrar, independentemente de credos e ideologias. Tudo o que lá houver de fantasia só enriquece a verdade, e dá mais sentido à existência.
Por entre aquelas linhas, ou no seu avesso, podemos sentir o pulsar das pequenas grandes coisas. Folheá-lo é respirar, um regresso à natureza. Faz-nos acreditar que vale a pena querer um mundo melhor para todos, sabendo bem como ele é, sabendo que não o mudamos radicalmente, de um dia para o outro, mas que o podemos melhorar passo a passo. Isso faz-se começando pelos próprios gestos do quotidiano, pelo exemplo, em vez de se pretender que seja uma entidade abstracta a resolver tudo. Talvez o Estado, talvez Deus, talvez os outros, esse grande eterno culpado por tudo o que vai mal.
Clinton, com um discurso simples, embora mostrando a sua inteligência e sentido político fora do comum, inspira-nos a ideia de que vale a pena trabalhar para melhorar a vida de todos. O acento que coloca na ambição, na dedicação, no trabalho árduo, na perseverança em busca de concretizar esse desígnio, com respeito por todos (mesmo os adversários), com especial atenção aos mais humildes e desprotegidos, enraíza as palavras na acção e na ética, cores tão desvanecidas no actual panorama internacional. Fá-lo com alegria, com orgulho, sem mostrar o rosto cinzento dos que transportam o pesado fardo dos eleitos, hoje tão característico, que mais não é que a falta de humanidade. Fá-lo com um nítido respeito pela liberdade, colocando-se acima da mesquinhez dos tempos.
A política, como a vida, é uma oportunidade de realização pessoal e colectiva, uma oportunidade única de felicidade. A sorte de poder servir.
Independentemente de se concordar ou não com as suas ideias, Clinton personifica um grupo de políticos com outra bagagem, com outra dimensão, outra classe. Nos dias que correm, temos dificuldade em vislumbrar, pelo menos no meu curto ver, gente com essa poesia. Não é que não haja para aí políticos com grandes competências, que os haverá. Parece-me é que não há alegria, e mais umas quantas outras coisas, como o respeito pela liberdade e pela justiça.
Não, não sou nem pessimista nem derrotista, antes pelo contrário. Porém, creio que não estarei muito longe da verdade se disser que sentimos falta de gente mais genuína, mais empenhada na resolução dos problemas, com verdadeira dedicação à causa pública, que veja na política um exercício nobre. Em vez disso, assistimos atónitos (e cada vez mais distanciados) a um “jogo sujo”, guerrilhas de interesses, amiguismos e carneirismos, clientelismos e lambebotismos. Os partidos, imprescindíveis ao jogo democrático, deveriam dar mais atenção à profundidade das suas responsabilidades sociais, em vez de serem, tantas vezes, mais um clube na luta pelo título do orçamento e dos prémios de jogo.
Se, como se ouve tanto, cada país tem os políticos que merece – e eu acredito nisso, pois claro –, então temos todos que fazer por merecer e exigir melhor. O que é mais difícil é que as melhorias têm de começar em cada um de nós, procurando acordar com a balança afinada.
É preciso perguntar, como Kennedy, o que podemos nós fazer pela nossa “américa”, em vez de esperarmos que ela (o Estado) nos resolva a vida. Mais, devemos até pedir que, em certas matérias, não se atravesse tanto no caminho.
1 comentário:
Tive a oportunidade de ler o artigo logo cedo no jornal, já esperava anciosa, já que na semana passada não houve artigo! Vou tentar dar uma olhada no livrinho...mas a verdade é que o que gosto mesmo é de o ler a si!
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