Paixões proibidas?
Sempre que me perguntam, no estrangeiro, de onde sou, tenho uma grande dificuldade em dar uma resposta clara. Recordo-me de uma vez, na Indonésia – corria o ano de 2003 – que o meu interlocutor, um guia turístico balinês, olhou algo incrédulo a minha explicação balbuciante e, acredito que por momentos, terá mesmo suspeitado estar perante um perigoso apátrida. Dizia-lhe eu que tinha nascido em Angola, tendo depois de 1975 ido viver para Portugal, mas que estava a trabalhar em Timor-Leste e me sentia uma espécie de cidadão da língua portuguesa.
O meu novo amigo, que me conduzia ao hotel de Bali onde passaria uma noite, em trânsito para Díli, depois de breves instantes em silêncio, de mais algumas explicações, nomeadamente do que significava a expressão do poeta “a minha pátria é a língua portuguesa”, exclamou para meu espanto: «Então, também eu sou um pouco dessa pátria!»
Tinha razão, de certa forma, aquele amável indonésio da ilha de Bali. Afinal, admiravelmente, tínhamos tido aquela longa conversa na língua de Camões. Surpreendidos? Como havia muitos portugueses a passar por Bali na sua viagem para Timor e muitos timorenses também, ele havia decidido aprender português, por sua conta e risco, sozinho. E falava lindamente. Além disso, conhecia muito da nossa geografia, da nossa história e da nossa cultura, que admirava, e dizia-se, para minha tristeza, que sou sportinguista, adepto do Futebol Clube do Porto. Tinha descoberto, nos seus estudos, que a língua indonésia tinha dezenas e dezenas de palavras com origem neste pequeno país da Europa, como jenela (janela), sepatu (sapato) e gereja (igreja). A agradável conversa logo se estendeu ao recepcionista do hotel, agora em inglês, com uma abordagem dos laços históricos entre Portugal e a Indonésia, o que justificava, numa situação ímpar, uma sala no Museu Nacional dedicado a Portugal.
Vem esta inesquecível memória a propósito daquilo que é ser português ou, mais precisamente, habitante dessa pátria que é uma língua. Talvez choque muitas pessoas ao dizer que, para mim, é português quem fala a língua e a sente como sua.
Declaro-me, portanto, defensor dessa pátria, acima de quaisquer fronteiras, acima de quaisquer diferenças, acima de todos os conflitos. A língua portuguesa pode e deve ser um espaço de história comum, de pontes culturais, de fraternidade e de paz. Diria que deve ser esse veículo, activo, de promoção do humanismo português, desse Portugal ao jeito do Padre António Vieira ou do filósofo Agostinho da Silva. Um Portugal para além do país físico, para além dos portugueses, que tantos teimam em ver apenas como membro da União Europeia, esquecendo aquela vocação que deu mundos ao mundo.
Esta afirmação que faço tem, é claro, implicações muito para além do simples romantismo que muitos simpaticamente me atribuirão. E é aí que quero chegar. E esqueçam, por favor, qualquer emoção nacionalista, imperialista ou colonialista, que não me agrada nem um pouco. Não é para aí que quero ir. Venham comigo.
Acabou recentemente uma boa série televisiva – “Paixões Proibidas” – baseada na obra de Camilo Castelo Branco, que trouxe para a ribalta a nossa história comum com o Brasil, esse grande Portugal. O período retratado foi aquele em que, depois da fuga da Corte para o Rio de Janeiro, após as invasões napoleónicas, um Império tinha a sua capital fora do seu centro original. Aí se viu como, apesar da feliz independência do Brasil, depois do famoso grito do Ipiranga, saído das goelas do Príncipe D. Pedro – o português que foi o primeiro brasileiro – somos uma família, e é muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa. Isto é o que, para nossa desgraça, tanto portugueses como brasileiros esquecem frequentemente, para logo encontrar diferendo nas diferenças (como a pobre discussão sobre a posse da língua), que acabam por nos afastar mais do que o Atlântico. As diferenças constituem a diversidade que dá alma e cor a essa terra imaginária (a língua), unida pelo mar oceano que os portugueses tiveram a coragem transformar em caminho de encontro, nesse feito gigante da gesta humana.
Dizem-se muitas barbaridades por ignorância, ou estupidez, que promovem o afastamento dos povos, como aquela do Caetano Veloso de que os portugueses só tinham ido ao Brasil sugar e matar índios. Perdoamos-lhe pela qualidade da sua música, em português.
Mas também nós temos pecados feios na forma como tratamos os nossos “irmãos”. Não vale a pena esboçar exemplos, que todos reconhecerão no seu dia-a-dia a forma como alguns se referem aos brasileiros, e mesmo aos dos outros países da CPLP. Andamos algures entre a vassalagem política e o racismo imbecil.
A nossa desconfiança em relação aos imigrantes lusófonos muda, porém, quando nos emocionamos com os feitos desses ilustres representantes do país como o nosso velho Pantera Negra (moçambicano), o campeão do mundo de triplo-salto Nélson Évora (cabo-verdiano), a campeã europeia de salto em comprimento Naide Gomes (são-tomense), o Nani do Manchester (cabo-verdiano), o Deco do Barcelona (brasileiro) ou mesmo o nigeriano Francis Obikwelu, recordista europeu dos 100 m, entre tantos outros. Pessoas que vieram para Portugal à procura de uma vida melhor, lutaram contra grandes dificuldades, trabalharam, integraram-se, venceram, e deram um enorme contributo ao país.
Não é apenas no desporto, naturalmente, que temos casos de imigrantes de sucesso. Descobri, por exemplo, ao consultar na Internet o blog “De Rerum Natura”, de conhecidos investigadores da nossa praça, que também grandes cientistas como o Padre Bartolomeu de Gusmão (criador da passarola), José Bonifácio de Andrada e Silva (mineralogista-metalurgista) e Alexandre Ferreira (notável explorador-naturalista) eram, afinal, brasileiros, nascidos respectivamente em Santos (São Paulo), os dois primeiros, e em São Salvador da Baía, o último.
Podia falar de muitos outros casos – por exemplo na literatura, onde pouco nos interessa onde nasceu o escritor ou o livro –, para mostrar que é mais inspiradora essa pátria do tamanho da língua e da inteligência do que aquela cheia de fronteiras, assentes na pequena mentalidade que nos fechou do mundo e tanto nos prejudicou.
Isso, sejamos sérios, também nos obriga a acolher melhor os imigrantes, todos eles, sejam estrelas de futebol ou pedreiros anónimos.
É preciso vencer a ignorância, os complexos do passado colonial e o medo do desconhecido. Aqui está um novo desafio que não será certamente uma paixão proibida.
Sempre que me perguntam, no estrangeiro, de onde sou, tenho uma grande dificuldade em dar uma resposta clara. Recordo-me de uma vez, na Indonésia – corria o ano de 2003 – que o meu interlocutor, um guia turístico balinês, olhou algo incrédulo a minha explicação balbuciante e, acredito que por momentos, terá mesmo suspeitado estar perante um perigoso apátrida. Dizia-lhe eu que tinha nascido em Angola, tendo depois de 1975 ido viver para Portugal, mas que estava a trabalhar em Timor-Leste e me sentia uma espécie de cidadão da língua portuguesa.
O meu novo amigo, que me conduzia ao hotel de Bali onde passaria uma noite, em trânsito para Díli, depois de breves instantes em silêncio, de mais algumas explicações, nomeadamente do que significava a expressão do poeta “a minha pátria é a língua portuguesa”, exclamou para meu espanto: «Então, também eu sou um pouco dessa pátria!»
Tinha razão, de certa forma, aquele amável indonésio da ilha de Bali. Afinal, admiravelmente, tínhamos tido aquela longa conversa na língua de Camões. Surpreendidos? Como havia muitos portugueses a passar por Bali na sua viagem para Timor e muitos timorenses também, ele havia decidido aprender português, por sua conta e risco, sozinho. E falava lindamente. Além disso, conhecia muito da nossa geografia, da nossa história e da nossa cultura, que admirava, e dizia-se, para minha tristeza, que sou sportinguista, adepto do Futebol Clube do Porto. Tinha descoberto, nos seus estudos, que a língua indonésia tinha dezenas e dezenas de palavras com origem neste pequeno país da Europa, como jenela (janela), sepatu (sapato) e gereja (igreja). A agradável conversa logo se estendeu ao recepcionista do hotel, agora em inglês, com uma abordagem dos laços históricos entre Portugal e a Indonésia, o que justificava, numa situação ímpar, uma sala no Museu Nacional dedicado a Portugal.
Vem esta inesquecível memória a propósito daquilo que é ser português ou, mais precisamente, habitante dessa pátria que é uma língua. Talvez choque muitas pessoas ao dizer que, para mim, é português quem fala a língua e a sente como sua.
Declaro-me, portanto, defensor dessa pátria, acima de quaisquer fronteiras, acima de quaisquer diferenças, acima de todos os conflitos. A língua portuguesa pode e deve ser um espaço de história comum, de pontes culturais, de fraternidade e de paz. Diria que deve ser esse veículo, activo, de promoção do humanismo português, desse Portugal ao jeito do Padre António Vieira ou do filósofo Agostinho da Silva. Um Portugal para além do país físico, para além dos portugueses, que tantos teimam em ver apenas como membro da União Europeia, esquecendo aquela vocação que deu mundos ao mundo.
Esta afirmação que faço tem, é claro, implicações muito para além do simples romantismo que muitos simpaticamente me atribuirão. E é aí que quero chegar. E esqueçam, por favor, qualquer emoção nacionalista, imperialista ou colonialista, que não me agrada nem um pouco. Não é para aí que quero ir. Venham comigo.
Acabou recentemente uma boa série televisiva – “Paixões Proibidas” – baseada na obra de Camilo Castelo Branco, que trouxe para a ribalta a nossa história comum com o Brasil, esse grande Portugal. O período retratado foi aquele em que, depois da fuga da Corte para o Rio de Janeiro, após as invasões napoleónicas, um Império tinha a sua capital fora do seu centro original. Aí se viu como, apesar da feliz independência do Brasil, depois do famoso grito do Ipiranga, saído das goelas do Príncipe D. Pedro – o português que foi o primeiro brasileiro – somos uma família, e é muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa. Isto é o que, para nossa desgraça, tanto portugueses como brasileiros esquecem frequentemente, para logo encontrar diferendo nas diferenças (como a pobre discussão sobre a posse da língua), que acabam por nos afastar mais do que o Atlântico. As diferenças constituem a diversidade que dá alma e cor a essa terra imaginária (a língua), unida pelo mar oceano que os portugueses tiveram a coragem transformar em caminho de encontro, nesse feito gigante da gesta humana.
Dizem-se muitas barbaridades por ignorância, ou estupidez, que promovem o afastamento dos povos, como aquela do Caetano Veloso de que os portugueses só tinham ido ao Brasil sugar e matar índios. Perdoamos-lhe pela qualidade da sua música, em português.
Mas também nós temos pecados feios na forma como tratamos os nossos “irmãos”. Não vale a pena esboçar exemplos, que todos reconhecerão no seu dia-a-dia a forma como alguns se referem aos brasileiros, e mesmo aos dos outros países da CPLP. Andamos algures entre a vassalagem política e o racismo imbecil.
A nossa desconfiança em relação aos imigrantes lusófonos muda, porém, quando nos emocionamos com os feitos desses ilustres representantes do país como o nosso velho Pantera Negra (moçambicano), o campeão do mundo de triplo-salto Nélson Évora (cabo-verdiano), a campeã europeia de salto em comprimento Naide Gomes (são-tomense), o Nani do Manchester (cabo-verdiano), o Deco do Barcelona (brasileiro) ou mesmo o nigeriano Francis Obikwelu, recordista europeu dos 100 m, entre tantos outros. Pessoas que vieram para Portugal à procura de uma vida melhor, lutaram contra grandes dificuldades, trabalharam, integraram-se, venceram, e deram um enorme contributo ao país.
Não é apenas no desporto, naturalmente, que temos casos de imigrantes de sucesso. Descobri, por exemplo, ao consultar na Internet o blog “De Rerum Natura”, de conhecidos investigadores da nossa praça, que também grandes cientistas como o Padre Bartolomeu de Gusmão (criador da passarola), José Bonifácio de Andrada e Silva (mineralogista-metalurgista) e Alexandre Ferreira (notável explorador-naturalista) eram, afinal, brasileiros, nascidos respectivamente em Santos (São Paulo), os dois primeiros, e em São Salvador da Baía, o último.
Podia falar de muitos outros casos – por exemplo na literatura, onde pouco nos interessa onde nasceu o escritor ou o livro –, para mostrar que é mais inspiradora essa pátria do tamanho da língua e da inteligência do que aquela cheia de fronteiras, assentes na pequena mentalidade que nos fechou do mundo e tanto nos prejudicou.
Isso, sejamos sérios, também nos obriga a acolher melhor os imigrantes, todos eles, sejam estrelas de futebol ou pedreiros anónimos.
É preciso vencer a ignorância, os complexos do passado colonial e o medo do desconhecido. Aqui está um novo desafio que não será certamente uma paixão proibida.
4 comentários:
Engraçado que ainda ontem estava a falar dos emigrantes e imigrantes...
Dizia eu que muias das pessoas que vêem para o nosso país procurar uma vida melhor, acabam por se deparar com imensas dificuldades, em geral, devidas ao medo, é isso que é o racismo e a xenofobia, medo, medo do desconhecido que fala a nossa língua mas pouco mais parece ter em comum.
Dei um exemplo fácil de entender, os portugueses que vão para outros países com os mesmos propósitos acabam por criar os mesmos sentimentos nas pessoas que habitam nessas nações...Muitas vezes a ideia que os europeus têm de Portugal, é únicamente aquela que os nossos emigrantes passam. No fundo nada conhecem da nossa cultura, dos nossos feitos, das nossas dificuldades...muito semelhantes ás deles em grande parte dos casos.
É um ciclo que se repete...é como o homem que olha para trás e espreita pelo canto do olho a ver se alguém o persegue, e esse que vai atrás dele, por sua vez também caminha amedrontado pelo que se lhe segue no caminho...
O mundo parece cada dia mais perigoso, mas afinal nos meus poucos anos de vida, conheço muito poucas pessoas que alguma vez foram realmente prejudicadas por alguém estrangeiro...São raros os casos! Então porquê criar ideias fixas baseados nos maus exemplos?
tantos coneguiram vencer, apesar das dificuldade. Afinal de contas para quê sermos egoístas se quando partimos a única coisa que fica no mundo é a nossa lembrança no coração dos outros!
Permita-me uma correcção.
A sua citação abaixo "Pedras no caminho? Guardo todas,
um dia vou construir um castelo…
Fernando Pessoa"
tem um pequeno defeito: se fizer uma pesquisa minimamente séria (e não apenas uns sites manhosos na net) constatará que o poema não é de Fernando Pessoa.
É só uma questão de rigor. cumprimentos.
agradeço a correcção. gostaria de estar a agradecer a alguém com nome.
O anónimo também anda sempre a corigir-me...é um chatinho...Será que já se aperceberam que ninguém é perfeito e não vale a pena andarmos a tentar abalar as pessoas com nossas demonstrações de inteligência vazia de conteúdo e ainda para mais anónima? Alimentemo-nos de coisas mais gratificantes! By Otília Pedrosa!!!
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