6 de setembro de 2007

Cartas para Sakhalin - Diário de Aveiro (14)

Sorte grande ou terminação?

Todos conhecemos casos de abuso do Estado ou da Administração Pública sobre os cidadãos, sobre as pessoas. Todos temos percepção de uma generalizada impotência face a esse gigante.
Por vezes são fruto do mau desempenho e até do mau carácter de alguns dos seus agentes (ou colaboradores, como agora tanto se diz) e dirigentes, que se esquecem que estão ao serviço de todos os cidadãos, sem excepção, ricos ou pobres, poderosos ou fracos. É para isso que se aufere um vencimento que provém dos impostos dos contribuintes, pagos com o árduo esforço de todos os dias, na esperança de termos uma sociedade mais solidária, justa, livre, protegida por uma estrutura que garanta a sua organização e coesão. Na verdade, há quem esqueça que esse esforço é enorme e que, ao contrário daquilo que compramos em regime de concorrência, no que diz respeito aos serviços públicos, não temos grande escolha.
Mas é também o Estado hegemónico e gigante nos meandros da máquina organizativa, da burocracia, do aparelho, das leis e do funcionamento da justiça que, como uma espécie de monstro sem rosto, uma abstracção violenta, invade tantas vezes as nossas vidas, nos suga as energias, os recursos, abusa da nossa liberdade, viola os nossos direitos.
Não quero entrar num discurso demagógico e moralista, apenas sublinhar aquilo que todos sabem. Estamos conscientes, ainda que nos raros momentos de lucidez que a sensação de impotência nos permite, de que muito do que acontece é claramente um problema de cultura, responsabilidade de todos: não participamos como devíamos, não exigimos, temos um discurso e uma prática que são muitas vezes antagónicos. É como quando nos queixamos de que os outros fogem aos impostos, especialmente os grandes empresários – esses avultados pecadores –, mas também arranjamos os nossos subterfúgios para não os pagar – nós podemos cometer o pecadilho, porque temos pouco –, ou quando aceitamos todos os atentados contra o que consideramos certo, apenas porque são perpetrados pelo nosso partido-clube, ou a cunha quando é para alguém da família, e por aí adiante.
Uma coisa é certa, vivemos num país que, 33 anos depois da queda da ditadura, já devia apresentar outra maturidade social. No entanto, sobretudo para os menos fortes e afortunados, a noite democrática, frustração de tantas promessas, repetidas até à náusea, é palco de muitos pesadelos. Numa altura de dificuldades económicas, as coisas pioram e os efeitos perversos do nosso periclitante humanismo, da nossa insensibilidade perante o outro, os seus direitos e as suas carências, e sobretudo perante os nossos deveres, tornam-se mais nefastos. Além dos medíocres abusos patronais tão generalizados, públicos e privados, nomeadamente sob ameaça de despedimento, velada ou não, para subjugar empregados, vulneráveis num clima de elevado desemprego e muitas contas para pagar, temos que aturar os erros e danos causados pelo pai-tirano-Estado no âmbito das suas decisões, processos, atrasos e castigos sem apelo.
A este propósito, o parlamento aprovou recentemente por unanimidade uma lei de responsabilidade extracontratual do Estado cujo objectivo era defender os cidadãos do seu livre arbítrio e habitual impunidade, atribuindo-lhes maior capacidade para exigir indemnizações pelos danos causados. O Presidente da República vetou-a, com a preocupação central de que os seus custos para o erário público (contribuintes) possam ser demasiado elevados e os tribunais, já tão inoperantes, possam ser sobrecarregados com um (adivinhado) crescendo de processos. Por isso, devolveu o diploma ao hemiciclo para que seja revisto e (novas) contas sejam feitas.
Apesar de estar ao lado dos princípios que a lei encerra, o Presidente preferiu defender o sacro-Estado, conjunto dos cidadãos abstractos, em vez de se colocar ao lado das pessoas reais. Assim, em vez de se colocar a pressão na máquina desajeitada, ineficiente, arrogante e por vezes desonesta da Administração, para que funcione melhor, evitando os custos dos seus erros, teremos de aguardar melhores dias, continuando a financiar privadamente, subjugados, a manutenção dos seus podres.
Embora se compreendam, com realismo, as preocupações do Presidente, fica-nos a esperança de que os deputados voltem a fazer as contas e que, quando a lotaria parlamentar andar à roda, nos saia a sorte grande em vez da terminação.
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Nota: tive conhecimento desta decisão do Presidente através do FJV no seu texto O mau estado dos cidadãos em A Origem das Espécies. É também natural que algumas das suas críticas apareçam aqui, pois concordo em absoluto com elas. Just for the record.

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