2 de outubro de 2007

Cartas para Sakhalin - Diário de Aveiro (17)

Aqui a praxe é outra conversa
(leia até ao fim, pf)
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Numa rua que dá acesso à nossa universidade, dei-me conta de muita gente nova em passo firme e acelerado, mais raparigas do que rapazes, papéis nas mãos, como se estivessem a agarrar o primeiro dia de um importante percurso.
Estando em Setembro, rapidamente percebi do que se tratava: com o Outono vem a primavera estudantil e a cidade vive dias de grande alegria e renovado dinamismo. Chegaram a Aveiro jovens esperançosos num futuro promissor e, por isso, dispostos a grande esforço para se tornarem bons profissionais, acreditando que isso lhes trará, apesar dos difíceis desafios a suplantar, uma carreira, sucesso, dignidade. Para alguns, oriundos de famílias humildes, é mesmo o sonho derradeiro de uma vida melhor, com menos sacrifícios do que os seus pais tiveram de suportar para que eles pudessem estudar.
Com a entrada no ensino superior começa igualmente uma nova fase das suas vidas, longe da protecção familiar, que os levará a assumir uma maior independência e considerável autonomia. Isso trará profundas transformações da sua personalidade, mas boas, que ninguém se assuste. Aqui construirão, num ambiente intelectualmente desafiante, competitivo, mas de grande solidariedade, fortes pilares da sua maturidade e da sua condição de cidadãos. Motivar-se-ão não apenas pela sua própria fortuna, mas também por cumprir um papel em sociedade, porque, sendo jovens – todos sabemos que os jovens sonham mudar o mundo –, sabem bem que o mundo começa a mudar dentro de cada um. Eles sabem que as pessoas são o nosso melhor “recurso natural”, uma pedra preciosa que precisa de ser burilada, com arte. A educação, que extravasa aquilo que se aprende nas salas de aula, é uma ferramenta preciosa de conhecimento, saberes e valores, que transforma a pedra em diamante.
Vieram, então, para a cidade e a universidade certas.
Aqui são bem acolhidos por todos, professores, colegas, aveirenses. A universidade é moderna, tem excelentes condições estruturais, bons professores e a aprendizagem é feita em ambiente de investigação, nalguns casos do melhor que há. Os professores são muito exigentes, mas também compreensivos e bons conselheiros. Além do estudo, incentivam-nos a usar o tempo livre em actividades enriquecedoras, desportivas ou culturais. Em Aveiro há um clima de participação cívica fora do comum. Os alunos são estimulados a participar em conferências, debates e tertúlias, a que os próprios professores não faltam.
A cidade recebe-os engalanada como moliceiros em tempo de festa, reconhecendo a mais valia que constitui a sua vinda, quer pelo dinamismo económico que proporcionam – deixam aqui elevadas somas em dinheiro -, quer pelo enriquecimento cultural que as suas actividades extracurriculares trazem. As instituições locais empenham-se, aliando-se à universidade e à associação de estudantes, para que se sintam em casa e tenham boas condições de vida, de trabalho, e possam explorar o máximo das suas capacidades. Aqui, ao contrário de muitos outros sítios, até as suas festas periódicas, algo barulhentas, são aceites com um sorriso na cara, como quem perdoa essas desventuras estudantis àqueles que se deixaram adoptar pela cidade e nunca mais a esquecerão. Uma coisa abona em seu favor: a academia procura envolver a cidade e evitar, tanto quanto possível, distúrbios contra as pessoas e os seus bens.
Tudo isto é uma cultura, que se ganha logo à chegada. No meu passeio, à medida que me aproximava do Campus ia encontrando grupos de estudantes mais velhos que, trajados, organizavam actividades de boas vindas para os recém-chegados, mostrando que em Aveiro a praxe é diferente e passa também por uma integração num referencial de valores. Aqui todos procuram proporcionar esse ambiente universitário fantástico, rigoroso, exigente, responsabilizante, mas de grande camaradagem, humanista e universalista, que promove o melhor da inteligência. Pelo meio, claro, há muita diversão, animando os espíritos, mas não há vestígios daquelas palhaçadas infantis que humilham os “caloiros”, os fazem sentir-se perdidos, para depois os encaminhar nessa brilhante descoberta científica de que o chumbo, afinal, é metal nobre, coroa de cábulas.
Para evidência poética deste cenário, um estudante trajado com alma recitava, junto à Reitoria: «Em perigos e guerras esforçados/ Mais que prometia a força humana, / E entre gente remota edificaram/ Novo Reino, que tanto sublimaram».
Não, em Aveiro queremos conquistar mares nunca dantes navegados e não temos tempo a perder. Aqui a praxe é outra conversa.
É assim, não é?

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