14 de novembro de 2007

Cartas para Sakhalin - Diário de Aveiro (21)

Chip na bola?

Depois de ter dito na semana passada que não era grande fã do programa Prós e Contras, tenho hoje de dar a mão à palmatória e logo a favor de uma edição sobre futebol.
Também eu tenho sido crítico em relação ao país da bola, onde tudo gira em torno do desporto rei e, especialmente, para mal de quem sua a camisola honestamente, em volta do apito, que ora é dourado, ora é vermelho, ora é verde, ora é “tutti frutti”.
Mas, independentemente da fruta, o futebol é paixão que faz mover o planeta azul, e eu não sou excepção. Gosto muito de futebol. É um desporto de grande beleza técnica, uma arte que, como todas as artes, é difícil explicar a quem não tem os instrumentos para a perceber.
O futebol é também uma das nossas melhores indústrias. É das poucas em que os portugueses são dos melhores à escala global. Temos, assim em traços largos, o quarto lugar do campeonato do mundo e o segundo do campeonato da Europa. A selecção A está no oitavo lugar do ranking da Federação Internacional de Futebol (FIFA), atrás de grandes países como a Argentina (1º), o Brasil (2º), a Itália, a França, Alemanha, Espanha e Países Baixos. Oxalá estivéssemos assim nos outros indicadores de desenvolvimento. Os nossos clubes portam-se razoavelmente bem nas competições internacionais. A nossa indústria de jogadores é notável, com capacidade para produzir algumas das melhores vedetas mundiais: Figo, Rui Costa, Paulo Sousa, Pauleta, Cristiano Ronaldo, Nani, etc. E sem esquecer que temos ainda o “the special one” Mourinho e o não menos especial Carlos Queiroz do ManU.
Os jogadores, verdadeiros artistas desse magnífico espectáculo conseguem contrariar até todas as rasteiras menos desportivas, preparadas dentro e fora do campo. Sendo um negócio de milhões – nada contra -, o futebol está sob a mira de gente sem escrúpulos para ganhar a todo o custo (dinheiro, muito dinheiro, poder).
Este “Prós e Contras”, que versa em larga medida a introdução de auxílios tecnológicos à decisão dos árbitros, mostra alguns velhos do Restelo. O maior e mais barbudo é a FIFA e os seus patrões, apoiados numa rede de interesses pouco claros, sob a desculpa do conservadorismo das regras – uma incrível falácia. As regras do futebol já mudaram muito nos último anos, e ainda bem. A estes velhos senadores interessa alguma confusão, alguma subjectividade, que garanta a influência que lhes permita determinar a justiça final do jogo. É um hábito muito entranhado. Também na sociedade é assim, havendo uns tais que se consideram deuses próximos do arquitecto, decidindo, conforme o vento e a chuva, o que é justo, quem deve ganhar ou perder.
É um mundo perigoso, lamacento.
O suposto árbitro, inocente ou corrupto, mas muitas vezes um pobre coitado em ambas as circunstâncias, lá anda nas bocas do mundo, servindo de bode expiatório, de joguete, nas mãos de criminosos na confusão da feira popular. Afinal, porque não podem ser usados todos os meios tecnológicos que auxiliem o juiz a tomar as decisões correctas? Afinal, porque não devem essas decisões ser o mais isentas e rigorosas possível?
Espantou-me ver pelo não o comentador desportivo Paulo Catarro. Diz ele que o erro faz parte da emoção do jogo, e que todos os intervenientes se enganam. O Paulo Catarro não sabe que o árbitro não é protagonista do jogo, mas o seu juiz! E também não consegue perceber que basta a beleza que as fintas dos Cristianos emprestam à arte e à emoção do espectáculo, sem necessidade de suspeitas sobre se houve erro ou aldrabice. O futebol, como tudo na vida, não deve temer a verdade e a justiça, desde que não se entre em derivas persecutórias, como aliás fazem políticos e jornalistas no nosso dia-a-dia, sem qualquer problema. O próprio Paulo Catarro gosta de repetir e repetir jogada para atacar os árbitros pelos erros cometidos, o que não deixa de ser fantástico!
Será que, por doença profissional, o comentador desportivo quer ser ele próprio o juiz da bola?
É totalmente infundado o medo de que os meios tecnológicos de apoio à verdade desportiva retirem à competição a sua espectacularidade. Quem pode acreditar nisso? Noutros desportos estão a ser implementados com excelentes resultados, como podemos ontem comprovar pelas opiniões objectivas do seleccionador nacional de rugby e pelo nosso proeminente árbitro internacional de ténis. O desporto rei é também um negócio de milhões que exige rigor e verdade, pois uma “decisão errada”, que poderia ser melhor julgada com apoio tecnológico, pode significar prejuízos avultados – prejudicando, em regra, os mais fracos, como se sabe, ou promovendo alguns por razões políticas. Assim ao jeito dos piores festivais da canção-do-bandido ou miss-qualquer-coisa-geo-estratégica.
Os auxiliares tecnológicos não vêm resolver tudo, é certo, e alguns podem até quebrar a dinâmica do jogo – pondere-se –, mas o que não se pode é tapar o sol com a peneira, nem confundir a floresta com a árvore. Certo é que o triste espectáculo da falta de verdade desportiva, que gente tão ilustre continua a proteger, tem afastado gente dos estádios e promovido a violência. Afinal, que espectáculo pode existir na falsidade?
É neste lamaçal, mais perto do coliseu romano do que dos palcos da modernidade, que assistimos com vergonha aos jogadores a atirarem-se ora à honra do árbitro ora às pernas dos colegas de modalidade sem medo de as partir. Da plateia ouvem-se impropérios que mancham o hino da pátria e dos egrégios avós.
Será que falta algum chip na bola dos senhores do futebol?
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Este texto na edição escrita tem uma gralha vergonhosa: "Os auxiliares tcnológicos não vêem..." A primeira vez que os meus olhos vêem o texto com olhos de ver, até me vêm lágrimas aos olhos.

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