1 de maio de 2007

Cartas Para Sakhalin - Diário de Aveiro (002)

Temos assistido nos últimos tempos a manifestações de intolerância face à presença em Portugal de “estrangeiros”, nomeadamente pela mão do Partido Nacional Renovador. É de todos conhecido o caso mediático do cartaz do PNR na Praça Marquês de Pombal em Lisboa, que dizia, entre outras coisas, “Basta de imigração”. No fundo, todos sabemos ler nas entrelinhas racismo e xenofobia encapotados, vestindo uma máscara de legalidade. Todos nós, no nosso dia-a-dia temos contacto com esta realidade, com a defesa destas ideias, umas vezes à boca-cheia, outras à boca-pequena. A forma silenciosa é a mais perigosa, pois mina qualquer sociedade como uma erva-daninha mina qualquer cultura.
Apesar de abominar as ideias preconizadas, considero fundamental garantir a liberdade de expressão como um dos pilares do Estado de Direito, democrático, livre. O combate de ideias que consideramos maléficas deve ser feito sem procurar esmagar quem pensa de modo diferente, pois toda a força que aí colocarmos voltar-se-á irremediavelmente contra nós e os princípios que advogamos (e foram construídos, conquistados, ao longo de séculos de evolução da humanidade). A tolerância, que não é indiferença, obriga-nos a permitir que tais ideias – por mais que nos custe – se expressem em liberdade e os seus defensores não sejam alvo de perseguição. Porém, devemos estar vigilantes, e actuantes, especialmente se identificarmos o lobo vestido de cordeiro, que esconde intenções proibidas pela Lei e, como parece ser o caso, mais do que isso: armas e vontade de violência sobre outros seres humanos. Neste caso, a Lei deve ser exímia e não permitir veleidades. Devemos ser irredutíveis na defesa dos valores da nossa civilização, que, diga-se o que se disser, com todas as suas falhas, é a mais avançada na protecção aos direitos humanos, no cumprimento da legalidade, na procura de justiça.
O racismo e a xenofobia são sinónimos de pobre (e muitas vezes maldosa) ignorância, terra profícua para o medo e a violência.
Aqueles que procuram legitimar o seu preconceito com a ciência podem esquecer o apoio desta – as “raças humanas” não existem, diz a biologia. As raças formam-se quando se mantêm populações isoladas umas das outras, impedindo que os seus elementos migrem entre si e se cruzem, durante o tempo suficiente para que estas evoluam distintamente, o que não é o caso. E quanto à cor da pele, por exemplo, tão utilizada para discriminar: a de cor escura, partilhada pelos povos tropicais, é apenas uma adaptação que a selecção natural favoreceu para nos proteger do excesso de radiação solar e nada mais. Não há, nem houve – apesar do desejo de alguns, como Hitler – um isolamento genético que alicerce a separação dos Homens em raças, muito menos em superiores e inferiores.
Portugal é uma feliz amálgama dos genes e das culturas de celtas, fenícios, romanos, visigodos, árabes, judeus, africanos, entre outros – não o reconhecer é renegar os nossos antepassados e a nossa identidade.
O nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, depois da conquista aos mouros do território a sul, sendo católico, permitiu que eles fossem portugueses, vivendo segundo a sua religião, respeitando a soberania do Estado que construía, num clima de mútuo respeito religioso e de costumes.
Desses povos ficaram-nos muitas riquezas, sendo a maior de todas, sem dúvida, a nossa identidade.
O feito dos Descobrimentos, que tanto orgulha os portugueses (alguns idiotas), nunca teria sido possível sem o contributo, especialmente intelectual, desses povos e dos imigrantes que acolhemos na época. Tínhamos recebido palavras que ampliavam a nossa língua e a nossa capacidade de sonhar. Tínhamos usufruído de conhecimentos científicos e tecnológicos que nos haviam transformado numa das nações mais avançadas, só assim capaz de navegar «por mares nunca dantes navegados». Fomos um país aberto, enriquecido nessa diversidade – buscámo-la em toda a parte, e a toda a parte a levámos. Fizemos a globalização cultural, e só então o Mundo foi inteiro.
Entre outras influências, a dos judeus foi vital, mas a inveja pelas suas fortunas foi encontrar na Inquisição e na fraqueza dos nossos soberanos o rastilho da sua perseguição e da nossa desventura. O fechamento de Portugal ao Mundo só nos trouxe pobreza, material e espiritual.
No campo das minhas opções pessoais ou, porque não, do desejo, considero os portugueses um povo do Mundo vasto e diverso, e prefiro claramente a pátria da língua à outra. Não consigo sequer imaginar a minha existência sem os outros povos e culturas dos países da CPLP. Além do mais, não considero portugueses apenas aqueles que têm pais portugueses, nasceram e vivem em Portugal. São antes aqueles que se sentem portugueses, independentemente da naturalidade, da cor da pele, da religião, das opções ideológicas e até da posição geográfica. Esse Portugal está muito para além das suas fronteiras físicas e não é nacionalista. Sei, claro, que devem existir regras no campo da realidade formal para a atribuição da nacionalidade – falava de outra coisa –, mas mesmo nesta matéria defendo um país mais aberto aos “estrangeiros”, à multiculturalidade – só temos a ganhar com isso.
José María Aznar, o anterior presidente do governo espanhol, disse no Porto a semana passada: «Dizem que o multiculturalismo é o exemplo máximo de tolerância. Não é assim. Haver uma lei igual para todos é que é tolerância.»1 Eu quero interpretar o que disse como: interculturalismo sim, numa perspectiva dinâmica, sem que a defesa da diversidade cultural sirva para sustentar práticas que coloquem em causa as conquistas da nossa civilização em matéria de liberdade e direitos humanos.
A cegueira do racismo e da xenofobia combate-se pela educação, e também pela integração dos estrangeiros, no respeito pela Lei – o que exige igualmente um esforço da sua parte! Todos devem poder viver sem medo, livres, salvaguardados nas condições mínimas de humanidade, e com condições de acesso às oportunidades para prosperar pelo mérito. Ninguém deve ser oprimido ou perseguido, por gestos, palavras ou omissões. Aqui, como em quase tudo, a verdade e o exemplo são traves mestras. Quantas vezes não ouvimos entre amigos e conhecidos – de diferentes graus de formação, classes sociais e opções ideológicas – discursos díspares? Um para consumo público, politicamente correcto, e outro, entre dentes, lá vai mostrando esse desdém pelo outro que é diferente.
A ignorância cultural, as dificuldades económicas e a insegurança face ao futuro agravam este clima de conflituosidade latente. Devemos exigir a todos – nacionais e estrangeiros – um maior empenho na construção de pontes para a compreensão mútua, integrada, é óbvio, no respeito pelos direitos humanos.
Um país de navegadores e emigrantes, que dessas viagens “enriqueceu” humana, cultural e materialmente, merecia (devia) ter vistas mais largas!

1 Fonte: jornal Público

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