Escravatura – uma coisa do passado
Têm sido demais – uma só seria demais – as notícias sobre trabalhadores portugueses que são explorados sob a promessa de uma vida melhor. Levados para o estrangeiro por agências intermediárias, nestes tempos difíceis e de desemprego crescente, são colocados a trabalhar em condições desumanas. São, em muitos casos, explorados à pior moda antiga, fazendo-nos duvidar das conquistas da história em matéria de direitos humanos. São, podemos dizer, independentemente da definição formal ou legal, escravizados. Estarão ainda frescos na memória de todos, pelo menos dos que não dormem sobre a desgraça alheia, os casos mais recentes em Espanha e na Islândia.
Mas nada disto tem grande significado por serem portugueses, não, mas antes por serem seres humanos como outros, muitos outros, ainda em piores condições. Estes poderão ser vistos por nós como a ponta portuguesa do iceberg – nada de mais (no contexto global), por mais que nos custe. São nossos e devemos defendê-los, claro que isso não está em causa. Mas devemos fazê-lo na consciência de que esta gélida e profunda vergonha humana é feita de muitas dezenas de milhões de escravos “modernos”, num movimento que não tem fronteiras e onde não há países inocentes.
Também estão em Portugal. Seres humanos traficados de todo o mundo, sobretudo da Europa de Leste, a quem começam por prometer uma vida melhor e depois subjugam, primeiro pela apreensão de documentos, depois pelas dívidas eternizadas (alojamento, refeições, supostos subornos para conseguir a legalização), caçando-lhes a maior parte do salário. Caso os infelizes transpirem vontade de fuga, mostram-lhes que sabem onde moram os familiares nos países de origem.
Calcula-se que cerca de 4 milhões de mulheres sejam metidas no negócio da “carne branca” todos os anos. Às vezes são os próprios pais ou “namorados” que as vendem. Vêm de lugares pobres, de países ou regiões em crise económica. Há milhares de crianças na mesma situação. Outras são raptadas e vendidas por estas redes “empresariais” do crime organizado multinacional. É o pior dos parasitismos.
Mas há também os que são escravizados nos seus países, trabalhando à frente do chicote sem descanso, sobrevivendo a pão e água, metendo produtos baratos no mercado da globalização – que não tem culpa nenhuma do facto – para o nosso próprio bem-estar. São aos milhões. São, em grande parte dos casos, crianças com menos de 10 anos. Hoje têm novos senhores, do seu próprio povo, o que só agrava a miséria da sua condição. Subjugados por gente sem escrúpulos, com a conivência de antigos vendedores de sonhos que deram em corruptos estadistas e com a complacência diplomática da “realpolitik”, têm poucos motivos para sonhar com a verdadeira libertação. É bom que não esqueçamos que não estamos livres desse peso na consciência da nossa (actual) política externa. Temos convenientes relações com a maioria desses Estados.
Em muitas das ocasiões em que a escravatura é referida, no cenário das relações internacionais e no âmbito das correcções da história, lá aparecem as referências ao tráfico de africanos para a América feitas por europeus – justas –, e as exigências de pedidos de desculpa formais – apenas mais uma palhaçada no triste espectáculo da humanidade.
O pior mesmo é que existem actualmente mais escravos do que alguma vez foram comercializados durante esse período de cerca de 300 anos. O pior é que muitos dos líderes dessas nações não se olham ao espelho. Os seus gestos indignados, exigindo reparação, em regra, não são mais do que poeira atirada para os olhos da ignorância e o coração da inocência. Procuram encher o vazio em que se transformaram muitos dos movimentos de libertação nacional, esconder vícios internos, e alimentar, em muitos casos, o romantismo complexado, oco e bacoco, pouco construtivo, mas politicamente correcto, de pretensos defensores dos direitos humanos – um enfeite.
Quase 60 anos depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), depois do fim da Colonização – embora haja ainda países que convenientemente as conservam –, depois do fim da segregação racista nos EUA, depois do fim do apartheid, tudo isto é miserável!
Ainda era um miúdo quando ouvi pela primeira vez, arrepiado, a repetição do discurso inflamado, inspirador, de Martim Luther King frente ao Lincoln Memorial em 1963. King dizia à multidão «I have a dream»: tinha o sonho de que um dia fosse possível que filhos de escravos e filhos de antigos donos de escravos pudessem sentar-se juntos, nas colinas vermelhas da Geórgia, à mesa da fraternidade.
A realidade mostrou ser bem mais complexa. Esta culpa, sem nacionalidade nem cor de pele, deixa-nos a todos profundas marcas de chicote na alma.
Respeito, muito respeitinho e medo
As coisas andam feias e crispadas. A nossa vida em sociedade anda tensa. Estamos afastados da política. Não acreditamos na justiça. A economia não ajuda. Talvez nos valha aquele ditado popular: casa onde não há pão, todos ralham, e ninguém tem razão. Andamos um pouco irritados com a sorte, mas isso não pode servir de desculpa para tudo
Há por aí gente muito zelosa em garantir o respeitinho ao Senhor Presidente do Conselho (se é que me entendem). Cuidado, muito cuidadinho. Parece que voltámos uns anos atrás. Subtilmente estas coisas acontecem, porque na verdade, lá no fundo, as pessoas não mudaram assim tanto, como se desejaria. Há sempre tendências, inclinações, tiques que perduram. Fazer vigilância ideológica, defender o chefe,a “família”, tudo isso serve de desculpa para perseguir no trabalho (na função pública) e alimentar a carneirada de queixinhas bajuladores. Não está correcto, nem pode ser admitido. Venha de quem vier.
A Sra. Directora-Geral de Educação do Norte, ao instituir o processo disciplinar ao professor, que terá feito um comentário jocoso ou uma ofensa (?), em privado, ao primeiro-ministro, mostrou bem a sua cepa. Mesmo que o comentário fosse, e não me interessa nada saber, do mais reles possível, isso não lhe dava o direito de fazer o que fez. Na verdade, nem interessa o que disse o professor, porque, se foi em privado e sobre uma figura pública, não pode constituir motivo de processo disciplinar, nem pode ser visto como uma ofensa.
Não vale a pena vir para a televisão contar estórias da carochinha, nem vale a pena a ministra da Educação vir dizer que está a decorrer um inquérito para justificar a sua inacção. Mau, afinal, o cargo de directora-geral* não é de confiança política? Inquérito?! Basta o comunicado da direcção-geral* para a demitir.
Têm sido demais – uma só seria demais – as notícias sobre trabalhadores portugueses que são explorados sob a promessa de uma vida melhor. Levados para o estrangeiro por agências intermediárias, nestes tempos difíceis e de desemprego crescente, são colocados a trabalhar em condições desumanas. São, em muitos casos, explorados à pior moda antiga, fazendo-nos duvidar das conquistas da história em matéria de direitos humanos. São, podemos dizer, independentemente da definição formal ou legal, escravizados. Estarão ainda frescos na memória de todos, pelo menos dos que não dormem sobre a desgraça alheia, os casos mais recentes em Espanha e na Islândia.
Mas nada disto tem grande significado por serem portugueses, não, mas antes por serem seres humanos como outros, muitos outros, ainda em piores condições. Estes poderão ser vistos por nós como a ponta portuguesa do iceberg – nada de mais (no contexto global), por mais que nos custe. São nossos e devemos defendê-los, claro que isso não está em causa. Mas devemos fazê-lo na consciência de que esta gélida e profunda vergonha humana é feita de muitas dezenas de milhões de escravos “modernos”, num movimento que não tem fronteiras e onde não há países inocentes.
Também estão em Portugal. Seres humanos traficados de todo o mundo, sobretudo da Europa de Leste, a quem começam por prometer uma vida melhor e depois subjugam, primeiro pela apreensão de documentos, depois pelas dívidas eternizadas (alojamento, refeições, supostos subornos para conseguir a legalização), caçando-lhes a maior parte do salário. Caso os infelizes transpirem vontade de fuga, mostram-lhes que sabem onde moram os familiares nos países de origem.
Calcula-se que cerca de 4 milhões de mulheres sejam metidas no negócio da “carne branca” todos os anos. Às vezes são os próprios pais ou “namorados” que as vendem. Vêm de lugares pobres, de países ou regiões em crise económica. Há milhares de crianças na mesma situação. Outras são raptadas e vendidas por estas redes “empresariais” do crime organizado multinacional. É o pior dos parasitismos.
Mas há também os que são escravizados nos seus países, trabalhando à frente do chicote sem descanso, sobrevivendo a pão e água, metendo produtos baratos no mercado da globalização – que não tem culpa nenhuma do facto – para o nosso próprio bem-estar. São aos milhões. São, em grande parte dos casos, crianças com menos de 10 anos. Hoje têm novos senhores, do seu próprio povo, o que só agrava a miséria da sua condição. Subjugados por gente sem escrúpulos, com a conivência de antigos vendedores de sonhos que deram em corruptos estadistas e com a complacência diplomática da “realpolitik”, têm poucos motivos para sonhar com a verdadeira libertação. É bom que não esqueçamos que não estamos livres desse peso na consciência da nossa (actual) política externa. Temos convenientes relações com a maioria desses Estados.
Em muitas das ocasiões em que a escravatura é referida, no cenário das relações internacionais e no âmbito das correcções da história, lá aparecem as referências ao tráfico de africanos para a América feitas por europeus – justas –, e as exigências de pedidos de desculpa formais – apenas mais uma palhaçada no triste espectáculo da humanidade.
O pior mesmo é que existem actualmente mais escravos do que alguma vez foram comercializados durante esse período de cerca de 300 anos. O pior é que muitos dos líderes dessas nações não se olham ao espelho. Os seus gestos indignados, exigindo reparação, em regra, não são mais do que poeira atirada para os olhos da ignorância e o coração da inocência. Procuram encher o vazio em que se transformaram muitos dos movimentos de libertação nacional, esconder vícios internos, e alimentar, em muitos casos, o romantismo complexado, oco e bacoco, pouco construtivo, mas politicamente correcto, de pretensos defensores dos direitos humanos – um enfeite.
Quase 60 anos depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), depois do fim da Colonização – embora haja ainda países que convenientemente as conservam –, depois do fim da segregação racista nos EUA, depois do fim do apartheid, tudo isto é miserável!
Ainda era um miúdo quando ouvi pela primeira vez, arrepiado, a repetição do discurso inflamado, inspirador, de Martim Luther King frente ao Lincoln Memorial em 1963. King dizia à multidão «I have a dream»: tinha o sonho de que um dia fosse possível que filhos de escravos e filhos de antigos donos de escravos pudessem sentar-se juntos, nas colinas vermelhas da Geórgia, à mesa da fraternidade.
A realidade mostrou ser bem mais complexa. Esta culpa, sem nacionalidade nem cor de pele, deixa-nos a todos profundas marcas de chicote na alma.
Respeito, muito respeitinho e medo
As coisas andam feias e crispadas. A nossa vida em sociedade anda tensa. Estamos afastados da política. Não acreditamos na justiça. A economia não ajuda. Talvez nos valha aquele ditado popular: casa onde não há pão, todos ralham, e ninguém tem razão. Andamos um pouco irritados com a sorte, mas isso não pode servir de desculpa para tudo
Há por aí gente muito zelosa em garantir o respeitinho ao Senhor Presidente do Conselho (se é que me entendem). Cuidado, muito cuidadinho. Parece que voltámos uns anos atrás. Subtilmente estas coisas acontecem, porque na verdade, lá no fundo, as pessoas não mudaram assim tanto, como se desejaria. Há sempre tendências, inclinações, tiques que perduram. Fazer vigilância ideológica, defender o chefe,a “família”, tudo isso serve de desculpa para perseguir no trabalho (na função pública) e alimentar a carneirada de queixinhas bajuladores. Não está correcto, nem pode ser admitido. Venha de quem vier.
A Sra. Directora-Geral de Educação do Norte, ao instituir o processo disciplinar ao professor, que terá feito um comentário jocoso ou uma ofensa (?), em privado, ao primeiro-ministro, mostrou bem a sua cepa. Mesmo que o comentário fosse, e não me interessa nada saber, do mais reles possível, isso não lhe dava o direito de fazer o que fez. Na verdade, nem interessa o que disse o professor, porque, se foi em privado e sobre uma figura pública, não pode constituir motivo de processo disciplinar, nem pode ser visto como uma ofensa.
Não vale a pena vir para a televisão contar estórias da carochinha, nem vale a pena a ministra da Educação vir dizer que está a decorrer um inquérito para justificar a sua inacção. Mau, afinal, o cargo de directora-geral* não é de confiança política? Inquérito?! Basta o comunicado da direcção-geral* para a demitir.
Respeito, muito respeitinho. Tenham medo.
~
* Errata: directora-regional, direcção-regional (de Educação do Norte)
2 comentários:
http://www.eukn.org/espana/
http://www.eukn.org/portugal/
não teremos dinheiro para ter isto em português
O que aconteceu ao outro senhor, por se pronunciar, está mais perto de todos nós do que pensamos. Os avisos já se fazem sentir.
Devemos calar-nos? Alguém que passou pelo Tarrafal disse-me que não. Mas, na verdade, este morador forçado do campo, tem do alto dos seus 80 e muitos anos, mais força do que eu com menos de metade.
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