10 de julho de 2007

Cartas Para Sakhalin - Diário de Aveiro (010)

Mural em Manatuto, Timor-Leste
(Fotografia de Almeida Serra)
Hau hakerek surat ida

O dia 30 de Agosto de 1999 ficaria para sempre na história de Timor – eu diria da Humanidade – como símbolo de esperança e liberdade, como lição de luta e determinação. Um pequeno povo no sudeste-asiático (menos de um milhão), anos a fio abandonado pelo “realismo político” internacional, conseguia mediatizar a sua Causa e libertar-se, em referendo patrocinado pelas Nações Unidas, do jugo de uma superpotência militarista (com cerca de 200 milhões de habitantes).
Foram muitos os factores que tornaram possível o “milagre” da sobrevivência a um regime sangrento, que começou com a violenta invasão a 7 de Dezembro de 1975, quando Portugal procurava colocar um ponto final a um período colonial de quase 500 anos.
Foi todo um povo que soube resistir, sofrendo, tantas vezes silenciado, o dramático peso da espada da tortura física e psicológica. Foi a determinação de uma pequena guerrilha, mal armada, mas que, fruto de fortes lideranças – entre as quais a do Comandante Xanana Gusmão –, soube manter um nível mínimo de organização e cultura táctica, uma relação activa com a componente política da resistência e uma visão actualizada do mundo, permitindo-lhe o devido ajustamento das acções.
Foi uma resistência clandestina baseada em vidas duplas, para distrair e relaxar o inimigo, enquanto, na penumbra da noite cerrada, jovens estafetas subiam a montanha a pé com as informações surripiadas ou compradas com suborno, sustentando um quase mágico sistema de comunicações, que permitia igualmente fazer sair do território a denúncia dos atropelos constantes aos direitos humanos. Foi uma igreja católica que soube dar guarida ao enorme sofrimento, edificando-se como referência moral de civilidade e paz, fomentando a educação – das escolas da igreja sairiam alguns dos melhores líderes timorenses –, o respeito pela pessoa humana, denunciando ao mundo aquele inferno e, em gestos algo inéditos, apoiando mesmo os esforços da guerrilha. Alguns dos seus padres foram determinantes nesta matéria, quer ajudando nas comunicações, quer com apoio alimentar e logístico.
Foi uma diáspora que se foi agigantando – liderada em grande medida por Ramos Horta – e construiu um brilhante trabalho de relações internacionais, colocando na agenda internacional a questão de Timor, coligindo solidariedades.
Foram países e povos amigos, pessoas anónimas que juntaram a sua voz ao choro, às orações e aos cânticos das mães timorenses que viram morrer os seus filhos no Massacre de Santa Cruz em 1991 – um coro que se viria a tornar ensurdecedor. Quando nesse ano o mundo acordou para o problema de Timor, assistindo aterrorizado às imagens da matança que o exército indonésio perpetrou sobre jovens indefesos no cemitério de Santa Cruz, em Díli, recolhidas pelo jornalista Max Sthal, começava uma reviravolta na luta pela independência, cimentada por acontecimentos mediáticos posteriores, como a prisão de Xanana, a visita do Papa João Paulo II e, mais tarde, pela atribuição do Prémio Nobel da Paz 1996 a D. Carlos Ximenes Belo e a Ramos Horta.
Em Aveiro, creio que em Dezembro, um grupo de jovens estudantes universitários, ao qual eu tive o privilégio de pertencer, manifestava a sua solidariedade pelas vítimas e exigia a saída urgente e incondicional da Indonésia, contribuindo para lançar as raízes de um duradouro movimento que envolveria professores, estudantes e cidadãos aveirenses e colocaria a cidade e a universidade de pedra e cal na Causa Timorense. Mais tarde, quando fui presidente da Associação Académica, tive a oportunidade feliz de poder envolvê-la nesta difícil luta pela liberdade de Timor. As nossas iniciativas, das quais destaco as visitas de D. Ximenes a Aveiro (1997 e 1998, esta última para lançar a Campanha de Bolsas para Timor), foram, apesar de humildes, um contributo empenhado para aquele dia de emocionante felicidade que foi o 20 de Maio de 2002, quando, sob os auspícios da ONU, a bandeira de Timor-Leste independente subia o mastro mais alto do mundo para assinalar a vitória da liberdade.
Um conjunto de coincidências felizes, e o convite honroso dos professores Júlio Pedrosa e Renato Araújo, à época com funções de decisão no meio universitário português, e empenhados desde longa data na Causa, levaram-me a Timor-Leste em trabalho, no já distante ano de 2001, como representante da Fundação das Universidades Portuguesas (FUP) e coordenador local da implementação de cursos de ensino superior em língua portuguesa, projecto integralmente financiado pelo Estado português e liderado pela FUP.
No dia 11 de Novembro de 2001, quando assistia no Cemitério de Santa Cruz às cerimónias do 10º aniversário do Massacre, dei por mim a reviver emocionado todo aquele trajecto – uns anos antes apenas um sonho, para alguns improvável, para muitos impossível –, que me provava que vale a pena acreditar em valores e causas, por mais difíceis que sejam, por mais que nos digam que não vale a pena. E gravei para sempre, no meio daquela multidão de resistentes e vítimas, ao lado daquele povo heróico, a certeza de que o ser humano é capaz de grandes feitos quando neles se empenha de alma e coração.
Neste período sensível e crítico para os timorenses, depois das suas decisivas eleições, hau hakerek surat ida (escrevo esta carta) para lhes pedir o mesmo empenho, na construção do desenvolvimento e da paz, que colocaram na tarefa “impossível” da liberdade. Vocês provaram que são capazes. Nós agradecemos mais uma lição.



Para saber mais sobre Timor, ler: os livros do excelente escritor timorense Luís Cardoso (D. Quixote), dos quais destaco, para este efeito, Crónica de Uma Travessia; Autodeterminação em Timor Leste, de Ian Martin (Quetzal); Paisagens Timorenses com vultos, de Ruy Cinatti (Relógio d’Água); Funo, de Cal Brandão (AOV); As Flores Nascem na Prisão, de Adelino Gomes (Notícias).

2 comentários:

Anónimo disse...

vai ser um período crítico e decisivo, de facto
estamos a torcer para que,consigam reunir o empenho, sim, mas que também façam emergir o amor ao país e ao futuro, que já provaram que têm

Anónimo disse...

http://dn.sapo.pt/2007/07/16/opiniao/ultimo_japones_morre_2800_ultimo_por.html

interesting...