7 de novembro de 2007

Cartas para Sakhalin - Diário de Aveiro (20)

Casar com o Estado?

Sei que está a dar na RTP o Prós e Contras, que é muitas vezes mais Prós do que Contras, com um debate muito pobre, para festejo de quem está, para regozijo do deixa estar, e desconforto daqueles que queriam muito mais. Enfim, é o formato e o convite. Lamento, mas não faço parte do grupo de apreciadores, embora reconheça que é dos poucos programas de debate de ideias que ainda existem na televisão, que se tornou quase só entretenimento.
Discute-se o Orçamento de Estado, desse Estado que se escreve com maiúsculas contra o cidadão em minúsculas. Como sei, à partida, quais vão ser os discursos, dispenso a cartilha. Precisamos de uma outra atitude, que defenda realmente as pessoas, em vez de defender o Estado e quem dele se vai apoderando e servindo.
Mudo para o canal dois, mas o serviço público de televisão mostra uma série que se passa numa wishful land (terra desejada) onde só existem homossexuais, quase todos mulheres, e praticamente só se fala de sexo (fuck, na língua nativa, é a palavra mais ouvida). Concedo, acabei agora de verificar alguns aspectos interessantes sobre a discriminação negativa de que são alvo, e que deve ser encarada com seriedade. Mas é verdade que a maior parte do tempo a coisa é má, e também não me entusiasma, de modo que volto a este texto, com a vossa compreensão.
Os exemplos da forma agressiva e perversa como o Estado trata o comum cidadão, muito para além da televisão, são muitos e ostensivos. A lista é infindável e não caberia neste jornal. Com a promessa de nos proteger e salvar o corpo, os arautos do modelo (extremado) consomem-nos a alma, e depois deixam-nos quase só a pão e água. É uma cultura, uma estranha religião, que faz o cidadão ajoelhar-se perante este poderoso amo. Aqui chegamos, indirectamente*, ao Orçamento. Pagamos muitos impostos, mesmo localmente, sem nunca percebermos muito bem por que razão, para quê.
Mas o Orçamento, através dos impostos, traz água no bico. Revela uma atitude do estado face aos cidadãos. O Estado exige aquilo que não cumpre. Por exemplo, se nos atrasamos a pagar impostos, nesta máquina que o Dr. Paulo Macedo tão bem oleou, somos fortemente penalizados, mas se o estado se atrasa ou se esquece de pagar, isso não é problema – nós somos o elo mais fraco. Conheço uma pessoa que pagou, por engano com códigos Multibanco, duas vezes uma “despesa” fiscal. As Finanças reconheceram imediatamente o engano e o direito da pessoa ser ressarcida, mas isso já foi há quase dois anos e, até à data, nada de reembolso!
Qual o valor dos avultados descontos que fazemos? Uma outra pessoa que conheço, e que durante uma vida de trabalho descontou os devidos impostos, teve que pagar uma cirurgia do seu bolso numa clínica privada, pois a saúde gratuita condenara-o a uma lenta e perigosa espera. O sistema de saúde é complexo e nunca sabemos muito bem onde nos dirigirmos quando estamos mal. Horas e horas de espera nas urgências, empurrados para centros de saúde, muitos sem médico de família. Somos assaltados, espatifam-nos o carro e fogem, danificam-nos os bens, atropelam-nos os direitos, e as autoridades dizem-nos que nada podem fazer. Não nos sentimos seguros, protegidos, nesta e noutras matérias. O sentimento, na maioria das vezes, é mesmo de total impotência.
Nisto do orçamento, a vida está para os espertos, para aqueles que sabem adaptar-se bem ao sistema, enganá-lo, viver dele. Este estado de coisas consegue puxar do ser humano o “melhor” das suas habilidades. O problema é para os que estão entretidos a trabalhar e têm esta mania masoquista de interpretar erradamente a lei e cumpri-la.
As artimanhas, como todos sabemos, são muitas e bem imaginativas. Soube recentemente duma prática de “sobrevivência” notável, que revela esta capacidade sublime de adaptar o regime de princípios e valores ao sistema, ao qual nem escapam as “sólidas” convicções religiosas. Contaram-me que há casais que se divorciam no civil para evitar que o Estado venha sobre os seus bens. Como? Se um deles for empresário, basta ir colocando a riqueza no nome do outro, garantindo assim um pé-de-meia acima da máquina fiscal, caso a coisa dê para o torto. O pior é que continuam a viver sob o mesmo tecto e, pasme-se, a ir à igreja como casal, comemorando até, com o beneplácito de responsáveis e tontos, bodas de prata e ouro.
Por outro lado, conheci uma senhora que vive de uma miserável reforma de viuvez e que encontrou novamente a felicidade ao lado de um homem também ele reformado. Se casar com ele deixará de a receber e terão ambos que viver com 300 ou 400 euros da reforma do novo marido. Como tal, e para não viverem contra os seus valores (amigados clandestinamente), vão casar a Espanha, escapando à cegueira do Estado, a mesma que atribui reformas douradas e de somar a políticos inúteis ou os instala em empresas públicas, onde fazem corpo presente por milhares de euros mês.
Parece que é mais vantajoso estar divorciado do que casado, a não ser que seja com ele, com o Estado.
~
*Errata ao artigo publicado:
Esta segunda vírgula não aparece no artigo publicado, o que constitui uma gralha que aqui se corrige, pedindo desculpa aos leitores.
Adenda ao artigo publicado:
Uma leitora comunicou-me imediatamente que também ela fugia, vivendo maritalmente com uma pessoa, há uns bons anos (mais de 10), mas mantendo essa união na clandestinidade para não perder o arrendamento jovem. Mais um contributo para esclarecer o quanto é pernicioso o sistema fiscal e de incentivos.

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