7 de novembro de 2007

Quem tem medo do referendo?

DEMAGOGIA E MALABARISMO
Vasco Graça Moura
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É evidente que discordo de Vital Moreira quando ele diz, no blogue Causa Nossa, que o título do meu último artigo no DN, "Quem tem medo do referendo?", poderia figurar no topo do Guinness da demagogia política...
Primeiro, porque as frases na interrogativa são, normalmente, muito menos demagógicas do que as afirmações peremptórias, como o reiterado "Estão a mangar connosco..." com que V. Moreira pretende arrumar expeditivamente o projecto de Alcochete, ou a sua afirmação, a esse respeito, de que a CIP foi "barriga de aluguer"...
Segundo, porque dispondo Portugal dos mecanismos constitucionais necessários para fazer o referendo e tendo tido a promessa dos dois maiores partidos de que ele seria feito, não se vê onde está a demagogia. Pacta sunt servanda, como V. Moreira sabe. Demagogia é tentar justificar o contrário.
Terceiro, porque hoje em dia, face à Constituição, a matéria que nos ocupa é referendável sem sombra de dúvidas, mas V. Moreira considera que a resposta séria à minha pergunta é a de que "nem tudo é referendável" e ponto final.
Fico perplexo ante uma tão elíptica quanto arrogante, impertinente e leviana formulação, sobretudo depois de ter lido, noutro passo do seu blogue, que "o que está em causa na aprovação do Tratado de Lisboa (seja ela feita por via parlamentar ou por referendo) são somente as alterações que ele introduz nos tratados existentes" (itálico meu). Aliás, a distinção é ociosa e capciosa, pois não consta que o Tratado incida sobre outra coisa, além de tais alterações. "O novo tratado é uma extensa sucessão de emendas singulares ao texto dos dois tratados existentes" (V. Moreira dixit, no Público de 23.10.07).
Uma resposta séria implicaria invocar melhores razões para enjeitar o referendo... A questão não é de possibilidade jurídica, é de oportunidade política.
Além disso, é V. Moreira quem propõe um referendo europeu a realizar entre nós, sobre se Portugal deve sair da União Europeia, de modo a suprir "aquele que deveria ter existido aquando da adesão (mas nessa altura a nossa Constituição não permitia referendos)".
Sustentar que se deve suprir agora a falta de um referendo que então a Constituição não admitia é coisa que não cabe no meu entendimento. Estará V. Moreira a pôr em causa uma adesão do País à Europa comunitária que, ao tempo, foi feita com observância de todos os requisitos constitucionais e é pacífica para a larguíssima maioria dos portugueses? Quer desvirtuar e banalizar o referendo nessa medida? Dispõe-se a questionar a certeza e a segurança do direito cuja fonte são os tratados internacionais? Pretende alterar a eficácia da Constituição, a 21 anos de distância?
Eis uma surpreendente demagogia "retroactiva" bem mais digna de figurar no Guinness do que a minha!
Afinal, parece-me que V. Moreira tem mesmo medo do referendo ao Tratado de Lisboa... E acha que só aos privilegiados é dado entendê-lo. Não se coíbe de decretar com sobranceria que "os leigos ficam arredados da leitura e da compreensão do tratado" (Público, artigo cit.).
Mas a lógica do eminente constitucionalista que ele é leva-o à necessidade de, por construção puramente racional, legitimar, ex-post (e por um referendo, note-se bem) toda a presença portuguesa na União. Sobrepõe uma dialéctica nominalista e atemporal dos conceitos a uma ponderação histórica e substantiva dos interesses. Sabe que seria insensatez promover-se um referendo sobre se devemos sair da UE e que, da direita à extrema-esquerda, ninguém quer o País fora dela. Propõe uma pura inviabilidade, mas sossega a sua boa consciência académica.
Só pode ser assim por V. Moreira entender ter havido alienação ou transferência de uma parcela da soberania nacional em 1986. Mas então deve dizer-nos se, com o novo tratado, há ou não mais alienação ou transferência dessa soberania.
Por outro lado, se para V. Moreira o todo é assim tão radicalmente referendável num "verdadeiro e genuíno referendo europeu" a fazer em Portugal, então a parte, por identidade de razão, também deveria sê-lo.
E, devolvendo bem-humoradamente à procedência o chiste de que fui alvo, estou em crer que a construção de V. Moreira tem já lugar cativo e preeminente no Guinness dos malabarismos conceptuais...

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