Liberalismo de pacotilha
Os melhores colunistas e comentadores dos jornais portugueses andam por estes dias algo irritados com a crescente regulação dos comportamentos individuais pelo Estado ou até, simplesmente, com o esforço para efectivamente sancionar violações de regras já existentes. A coisa vai desde a proibição de fumar em espaços públicos onde não se consiga efectivamente separar fumadores de não fumadores até ao papel usado para embrulhar as castanhas assadas, passando pelos métodos de fabrico e venda das bolas-de-berlim. A irritação que isto suscita nem sequer é recente: ela já tinha caracterizado as reacções públicas aos radares instalados nas ruas de Lisboa, aos parquímetros ou ao (mitológico) fim dos joaquinzinhos às mãos da União Europeia. Mas, apesar da enorme diversidade dos pretextos, são três, e apenas três, os argumentos a que mais frequentemente recorrem os que se dizem incomodados com estas coisas.
Os melhores colunistas e comentadores dos jornais portugueses andam por estes dias algo irritados com a crescente regulação dos comportamentos individuais pelo Estado ou até, simplesmente, com o esforço para efectivamente sancionar violações de regras já existentes. A coisa vai desde a proibição de fumar em espaços públicos onde não se consiga efectivamente separar fumadores de não fumadores até ao papel usado para embrulhar as castanhas assadas, passando pelos métodos de fabrico e venda das bolas-de-berlim. A irritação que isto suscita nem sequer é recente: ela já tinha caracterizado as reacções públicas aos radares instalados nas ruas de Lisboa, aos parquímetros ou ao (mitológico) fim dos joaquinzinhos às mãos da União Europeia. Mas, apesar da enorme diversidade dos pretextos, são três, e apenas três, os argumentos a que mais frequentemente recorrem os que se dizem incomodados com estas coisas.
O primeiro é utilizado pelos autoproclamados defensores do "património cultural". Há dias circulava uma petição onde, a propósito de uma alegada proibição de servir cafés em chávenas de porcelana, se invocavam ameaças à "cultura" e à "tradição", esmagadas pela fúria normalizadora e moralizadora da ASAE. O facto de essa proibição nunca ter realmente existido já seria um indicador interessante do grau de racionalidade do argumento, mas nem é o único. Quando há uns anos se discutia uma possível diminuição da taxa de alcoolemia, os empresários dos sectores da restauração e vitivinícola invocavam, com surpreendentes preocupações antropológicas, a secular "cultura do vinho" em Portugal como algo que seria destruído por semelhante medida. Nada impede que aqueles cujos interesses são afectados por determinadas leis utilizem a retórica que muito bem entendam para esconder os argumentos mais absurdos e obviamente interesseiros, mas nada obriga a que os levemos a sério. E não consigo afastar a ideia, porventura injusta, que mesmo aqueles que desinteressadamente invocam argumentos "culturais" a propósito destes assuntos são um pouco como aqueles turistas do Norte da Europa que nos visitam todos os anos: o "pitoresco" é muito giro para visitar e saber que existe, desde que sejam os outros a levar com ele todos os dias.
Um segundo argumento é aquele que vê a proibição pelo Estado de determinados comportamentos individuais como um invariável atentado à liberdade, ou até um primeiro passo na abolição de direitos políticos fundamentais. Ao invocar-se a este respeito uma concepção liberal da autonomia individual e do papel do Estado, até se dá a este argumento uma embalagem sedutora. O problema é que estes liberais não devem ter lido o seu John Stuart Mill até ao fim. Para o liberalismo, cada indivíduo é o melhor juiz dos seus próprios interesses, e não deve caber ao Estado proibir determinados comportamentos, mesmo que eles possam ter consequências nocivas para aqueles que os adoptam. O uso da coerção nestas circunstâncias, mesmo com as melhores intenções, pode e provavelmente deve ser visto como paternalista e contrário à liberdade. Mas até os libertários reconhecem, seguindo Mill, que esse raciocínio se aplica exclusivamente aos comportamentos que não têm consequências nocivas para os outros. Quando essas consequências existem - como é manifestamente o caso do fumo em locais públicos, do estacionamento selvagem ou da condução sob efeito do álcool ou em excesso de velocidade - a invocação da liberdade individual como justificação para a não intervenção do Estado é insustentável. E é até possível contemplar que se proíbam comportamentos que têm consequências nocivas exclusivamente para aqueles que os adoptam sem que isso implique necessariamente uma colisão com a liberdade de escolha individual. Como explicava recentemente Richard Posner a propósito da proibição da venda de alimentos com gorduras sintéticas em Nova Iorque, não é preciso aderirmos a uma concepção paternalista e moralista do papel do Estado para compreendermos como, para os cidadãos, aceder a toda a informação necessária para fazer escolhas autónomas e informadas pode ser excessivamente oneroso. Por exemplo, esperar que os cidadãos saibam exactamente os riscos associados à toma de todos os medicamentos que as farmacêuticas queiram colocar no mercado é obviamente irrealista, e é por isso mesmo que delegamos decisões sobre essa matéria em agências reguladoras e em especialistas. Da mesma forma, delegar no Estado a responsabilidade de proibir determinados tipos de produtos, alimentos e modos da sua produção e confecção não contraria necessariamente o exercício de liberdades individuais, até porque, nas democracias, os termos dessa delegação podem ser revistos periodicamente. Os liberais, antigos e novos, têm assuntos bem mais graves com que se preocuparem na sociedade portuguesa.
Resta um terceiro argumento, o dos fatalistas. Estes até desejariam que os portugueses fossem mais ou menos civilizados e capazes de imaginar que as regras não são apenas para os outros. Contudo, julgam ser tal objectivo impossível, e muito menos por decreto. O que seria bom, afinal, era que fôssemos como os "anglo-saxónicos", que se regem por normas implícitas de comportamento e convivência e que partilham uma cultura cívica, em vez de estarem sujeitos a violentas e potencialmente ineficazes sanções legais. Mas suponho que estes fatalistas nunca terão tentado entrar com um carro no centro de Londres, estacioná-lo em segunda fila em Frankfurt ou deixá-lo parado em frente a um terminal em JFK "só um bocadinho que estou à espera de uma pessoa". Se o tivessem feito, teriam talvez ficado com dúvidas sobre aquilo que realmente causa o comportamento "civilizado": a cultura cívica, ou, pelo contrário, instituições, regras e um aparelho coercivo disposto a aplicá-las sem contemplações. Quem tenha vivido algum tempo nestas sociedades terá certamente verificado como pessoas de todas as culturas, "cívicas" ou não "cívicas", se civilizam com uma rapidez surpreendente.
O moralismo com que a legislação sobre o tabaco é apresentada por alguns dos seus defensores incomoda-me, e o mesmo sucede em relação ao crescente espalhafato da actuação da ASAE. Mas incomoda-me ainda mais verificar como pessoas que julgamos serem sensatas se revelam, neste caso, totalmente incapazes de se posicionarem sobre estes temas sem ser com um absolutamente transparente egoísmo, ainda por cima mal disfarçado de uma espécie de liberalismo de pacotilha, ele próprio moralista e paternalista, incapaz de imaginar que aqueles que querem apenas um pouco menos de caos e um pouco mais de respeito nas suas vidas quotidianas também amam a liberdade. Mas suponho que, num certo sentido, isso acaba por confirmar em parte os argumentos dos fatalistas: quando são os principais responsáveis pela aplicação das regras a minar a sua legitimidade no primeiro momento em que elas se aplicam a eles próprios, tal como sucedeu com a argumentação patética do director do ASAE no caso do "fumo do casino", que mais poderíamos esperar?
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